Os gaimilos (Gaimilus Tamegus)

Qualquer pessoa que tenha caminhado pelas margens do Tâmega e com atenção tenha olhado para aquilo que há debaixo da linha de água já terá visto os gaimilos.

Deixem-me recomeçar.

Qualquer pessoa que tenha caminhado pelas margens do Tâmega em Amarante e com atenção tenha olhado para aquilo que há debaixo da linha de água já terá visto os gaimilos.

De todas as bestas sobre as quais aqui vos falaremos, os gaimilos são certamente as mais abundantes. Nadando em grupo, basta querermos olhar com olhos de ver para logo nos apercebermos das suas escaminhas reluzentes brilhando a poucos centímetros da superfície. Atravessando o açude que liga o Parque Florestal na margem esquerda aos moinhos de água da margem direita, conseguimos ver cardumes de gaimilos dialogando nas suas ágoras e debatendo os assuntos do seu interesse comum.

Conhecidos por serem uma espécie gregária, é quase impossível encontrar um gaimilo nadando isoladamente. Os tamanhos médios dos grupos são de cerca cinquenta peixes, mas há relatos de observações de grupos com mais de trezentos. Estas formações de grande número são de muito curta duração e verificam-se sobretudo no início do Outono, para logo se separarem em vários grupos mais pequenos.

Diz-se que quando o rio está alto é mais acima, na Ilha dos Amores, onde os gaimilos vão procurar refúgio e preparar o seu futuro. Há até quem diga que aquando das cheias de 2001 foram vários os bichos que se atreveram a partir à procura dos desconhecido e têm hoje descendentes a viver em tanques, pequenos lagos e poças. Os mais imaginativos dizem até que alguns dos descendentes desses gaimilos mais aventureiros se evaporam com o calor para depois se deixarem chover, regressando assim ao curso do Tâmega. Há até quem jure ter visto gaimilos congelados a cair em momentos de grande saraivada. Cético como sou, tenho alguma dificuldade em acreditar nisso.

Procurei, mas não encontrei o nome científico da espécie. Como quero que este livro seja o mais rigoroso possível, permitam-me que faça uma tentativa: gaimulus tamegus, domínio eucariota, reino animal, filo chordata, ordem, família e género indeterminados.

O que são afinal os gaimilos? Procurei em livros de biologia, de ciências, de conjuros, procurei na lista de peixes de Portugal e em nenhum lado encontrei referência a esta espécie. Estaria a imaginar? Que partida traiçoeira me estariam a pregar os meus olhos que os viam e o meu corpo no qual eles tocavam quando me banhava no Tâmega? Foi preciso um dicionário para me salvar.

Já em 1913, Cândido de Figueiredo, no seu “Novo Dicionário de Língua Portuguesa”, escrevia à frente da entrada “gaimilo”: “m. Prov. dur. Peixe miúdo, com que se iscam canas e cordas. (Colhido em Amarante)”. Tanto há a dizer sobre esta pequena frase.

Desde logo, sobre este “Prov. dur.”, obrigando Amarante a situar-se em terras durienses quando nós próprios, os amarantinos, tanta dificuldade temos em assumir a nossa pertença a qualquer coisa que não seja nós próprios. Seremos do Douro? Se sim, do litoral ou interior? Seremos do Porto? Seremos minhotos? Talvez transmontanos? Ai, Cândido de Figueiredo, tão mais razão terias se escrevesses apenas “Prov. Ama.”, província amarantina.

É que estes peixinhos, pequenos, delicados e esguios, apenas ali têm existência. Suba-se ou desça-se o Tâmega e logo nos apercebemos que os bichos ainda lá estão, ainda lá está a carne, as espinhas, as guelras e as escamas. Mas não estão os gaimilos. Deixam de ter nome e, deixando de ter nome, deixam de ter existência. Onde antes estavam gaimilos estão agora apenas “peixes”; arraia miúda, na melhor das hipóteses. Mas não estão gaimilos.

Há uns tempos sentei-me na margem do rio, mais ou menos na linha que separa Amarante do Marco de Canaveses, e pus-me a olhar. À primeira vista, nada parece mudar, o peixe está lá na mesma, nada da mesma maneira, o seu tamanho não se altera. Mas há algo que se transforma, será talvez o seu brilho? Certo é que mesmo sem conseguir ver a fronteira exata, é evidente o sítio onde o gaimilo deixa de ser. Pobre besta nadando para o esquecimento.

E que dizer da redução destes animais a simples iscas? Sim, é certo que muitos gaimilos serviram apenas para atrair peixes maiores, mas isso é culpa nossa, dos humanos. O que é uma perca ou uma boga, ou um qualquer outro peixe comparado com um gaimilo? De que serve ser-se maior, mais visto, mais saboroso se não somos únicos?

Escrevo longe de Amarante. Estou em Genebra, sentado com a tumba de Jorge Luís Borges quase à minha frente e perguntando-me o que escreveria ele se tivesse sabido que há uma espécie de peixinhos que apenas existe num punhado de quilómetros de rio. Teria lá ido à pesca, certamente.

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