Tempo – Prefácio

«Para os navegantes com vontade de vento, a memória é um ponto de partida.»

Eduardo Galeano, As Palavras Andantes

O calendário desta história existe de verdade. Ou existiu, durante largos anos, no coração do Parque Florestal de Amarante. Hoje, no mesmo local, resta apenas uma mancha de terra lisa, coberta de flores nascidas da raiz do tempo que se tenta apagar. Passei pelo calendário dezenas, possivelmente centenas de vezes. Fascinado por ele, divagava daquele modo que apenas o cérebro infantil consegue; afinal, quem teria tido a ideia — magnífica, por certo — de inventar um calendário feito de pequenos arbustos que, na sua geométrica organização, iam sendo ordenados de forma distinta a cada dia, dando conta do tempo que passa?

Este era, aparentemente, um esforço inglório, uma vez que aquela nova organização duraria apenas umas horas, até à manhã seguinte, quando a terra seria novamente revolvida e os arbustos, com a sua base retangular, novamente colocados de modo a dialogar connosco. Não só o calendário nos dizia a data, como ainda acrescentava, numa redundância que me parecia absurda (quem não saberia onde estava quando para ele olhasse?), a localidade: «Amarante, dia, mês, ano».

Hoje, percebo melhor essa aparente redundância. É impossível pensar o tempo sem pensar o espaço. E um calendário de arbustos que se situe em Amarante, mas que indique apenas a data, não é o mesmo que um calendário de arbustos que se situe em Amarante e indique a data e também que se está em Amarante. O tempo, assim enraizado, ganha uma dimensão física, palpável, viva, que é preciso localizar e ancorar. Hoje é hoje, o aqui é aqui. Tempo e espaço.

Absorto, fixando o calendário, deambulava pelas questões que este me despertava. O que aconteceria se, durante todo um dia, ninguém, nem uma única pessoa, olhasse para o calendário? Ou, pior, o que aconteceria se, por erro ou por intenção, a data fosse diferente daquela que marcavam todos os outros calendários? Trago essa questão comigo há trinta anos.

Nesta história, e sem entrar em demasiados detalhes ou forçar uma leitura única que se quer evitar, recuperamos o calendário e imaginamos o que poderia acontecer se tal cenário acontecesse. Pode o tempo passado tornar-se presente? Pode o tempo passado ser presente? Se é verdade que o tempo não para nem quando estamos a dormir, também o é o facto de o tempo que passou continuar a existir. Um minuto vivido no presente continuará a ser um minuto vivido dez, vinte ou trinta anos depois. É aí que entra a memória; esse minuto do passado pode tornar-se um minuto do presente se pararmos para reviver tudo o que então sentimos, se conseguirmos replicar mentalmente esse minuto vivido.

Tempo e memória

No filme De Olhos Abertos, do realizador Alejandro Amenábar, essa ligação entre tempo e memória é sublimemente explorada. Numa cena passada numa prisão psiquiátrica onde estava detido César, a personagem principal que se debatia para perceber o que era real e o que era imaginado, este dialoga com o seu psiquiatra. Recordando um sonho, o psiquiatra pergunta a César se naqueles momentos ali recordados havia sido feliz. César, desesperado e desesperançado, desafia o clínico, perguntando para que é que interessa saber se havia sido feliz E acrescenta: «Agora, a única coisa que posso fazer é comer, cagar, dormir e sonhar com as minhas recordações.» Calmamente, o psiquiatra contrapõe: «É bom que recordes.»

A memória tem um poder extraordinário. Não é por acaso que tememos em partes iguais a morte e a perda de memória. Não poder recordar, não sermos capazes de rever, de reviver, é deixar de ser. Poderosa espada de Dâmocles precariamente suspensa, a memória atinge-nos de forma incontrolada. Lembrar um amor não correspondido pode estragar um primeiro encontro; a recordação de um familiar ou amigo morto atinge-nos quando menos esperamos, trazendo para o presente uma dura memória do passado. O presente feito passado, o passado tornando-se presente. Eis o poder da memória que nem sequer a morte consegue enfrentar.

Fazer do passado presente também nos pode salvar. No meio de uma crise, presos num fundo buraco de escuridão, há momentos em que apenas uma boa recordação nos aparece como um longo braço que nos ajuda a regressar à superfície. Às vezes basta um cheiro, um sabor, uma brisa, uma mirada, uma qualquer madalena de Proust para nos evadir do presente e trazer-nos ao passado, a um passado no qual fomos felizes.

Mas o que dizer dos que, como as anónimas, porque universais, personagens desta história, só conseguem ser felizes no passado? Como enfrentar um presente que os agasta, que reforça apenas a dureza de uma vida que gostariam de evitar? Dois cenários podem ser esquiçados. Por um lado, recusando um presente de tristeza, o indivíduo pode ir ativamente à procura de um futuro que lhe dê a felicidade tal como a concebe — ou algo que disso se aproxime. Este é um caminho arriscado, não só porque exige um grande esforço, como também porque os resultados não podem ser conhecidos de antemão. A luta aguerrida por um futuro melhor do que o presente pode ser coroada de êxito, compensando o tempo nela investido, mas podemos falhar e o tempo que encolheu o nosso presente possível foi gasto futilmente.

Por outro lado, aqueles que são privilegiados o suficiente para ter memórias de um passado em que foram felizes podem optar por viver nessa felicidade. Recusando novos trilhos, agarramo-nos ao passado, a uma época, a um ínfimo instante se tiver de ser, em que fomos felizes. E aí vivemos, imunes à realidade que nos rodeia, presos numa memória que nos concretiza. Uma prisão de felicidade será por isso menos claustrofóbica?

É neste equilíbrio entre possível desistência do futuro e luta por um presente ao nível do passado que esta história se desenvolve.

Como o Pobre Tolo de Teixeira de Pascoes, imóvel no meio da ponte de São Gonçalo — aqui representada na página 52 —, divagamos entre passado, presente e futuro. Sugados pela memória, transfiguramo-nos:

«Desapareço na escuridão interior. Um velho espectro me domina; adapta-se ao meu ser. Transfiguro-me, desconheço-me, não sou eu. Sou outra alma que revive; uma lembrança minha acordada com tal força, que se apodera de mim absolutamente. Sou ela e mais ninguém! Sou uma lembrança que revive, em carne e osso; revive, dissipa as brumas do Passado, e aprece de novo, sobre a Terra e no mesmo lugar que eu ocupava. Não sou eu; sou ela que a si mesma se observa e reconhece. Sou uma alma de outros temos. Esquecido dos vivos, lembrei-me de mim, ressuscitei!

(…)

O tolo existe e vive. Existe e, portanto, adora a realidade; e, porque vive, adora o sonho.»

A minha relação com o tempo é de respeitoso pânico. Desde que há uns anos li a passagem de Albert Camus que abre esta banda desenhada, oiço em permanência o ruído da areia que cai numa enorme ampulheta. Como um incómodo tinido que por vezes conseguimos olvidar, apenas para que regresse mais forte, mais intrusivo, mais alarmista sobre tudo o que estamos a deixar por fazer. Talvez ajude aceitar a temporalidade do efémero, abraçar o mono no aware japonês e aceitar a tristeza das coisas passageiras, como é efémero tudo aquilo que vivemos.

Tenho na minha sala uma foto de grandes dimensões de Massao Mascaro. Parte do trabalho Sub sole, onde o fotógrafo francês segue os passos de Ulisses, recriando a sua mítica Odisseia, a imagem capta um relógio solar. De pé, encostado a uma parede, e sem qualquer ponteiro, a parte baixa do relógio está já tapada por ervas selvagens que ali crescem. Desde o primeiro momento em que a vi,soube que teria de ter aquela imagem no mais destacado lugar de minha casa, assegurando que por ela passaria várias vezes ao longo do dia. Ali se representa, de forma imutável e estanque, o permanente conflito do tempo.

Primeiro, um relógio que não serve como tal: sem ponteiro e sem estar numa posição que permita à sombra indicar a hora tal como nós, os humanos, a concebemos. Segundo, por ser uma foto de um instrumento que nos coloca no tempo e que, como tal, estará sempre desfasada a partir do momento em que o obturador se feche. Um relógio duplamente inútil, como que insistindo na sua recusa de permitir que o tempo passe. Mas este avança, inexorável, como as ervas que vão crescendo e ocupando o espaço que antes era apenas do relógio fazem questão de afirmar. O tempo. O tempo que nunca conseguiremos parar.

É desse tempo que não para que falamos neste livro. Esta é uma história sobre o tempo, sobre aqueles que só conseguem ser felizes no passado e que, além de lembrar, precisam de desesquecer. Talvez hoje, mais do que nunca, precisemos de um calendário que nos coloque no tempo e no espaço; um calendário palpável, vivo, que nos permita recordar o passado, viver o presente e preparar o futuro e que reafirme a nossa ligação à terra à qual fatalmente regressaremos. Voltando ao Pobre Tolo de Pascoaes, talvez este seja o momento de ligar o tempo à memória: «Vivo, porque espero. Lembro-me, logo existo.»

Jorge Pinto

Argumento procura ilustração

Batata frita quer ganhar vida

Depois de algumas tentativas sem os resultados esperados, volto à carga, na procura de um(a) ilustrador(a) para o concurso de uma (bem paga) residência artística de BD em Bruxelas. A história gira em torno de uma batata frita à procura do seu lugar no mundo.

A saber (regulamento completo na ligação abaixo):
– A residência terá lugar no mês de setembro de 2023;
– Para participar no concurso, é necessário enviar até ao final de julho: 1 prancha finalizada, um esboço da história completa (16 ou 20 pranchas) e 1 estudo de personagens.

Alguém disponível para esta aventura?

https://drive.google.com/file/d/1FcVdSlirqyvbyFH2vRwycRSr2q-Lz3bL/view

A ecologia polarizada

Crónica do mês de julho no Gerador.

Voltemos à polarização. Não sendo possível esconder os impactos cada vez mais concretos das alterações climáticas, a direita concentrar-se-á cada vez mais no ataque aos ecologistas. Não se podendo atacar a mensagem, ataca-se o mensageiro. O exemplo mais paradigmático desta estratégia verifica-se em França, onde o governo decidiu recentemente dissolver o movimento “Soulèvements de la Terre”, naquilo em que pode ser visto como um “contrassenso histórico”. Ora, este contrassenso explica-se bem à luz desta necessidade de apresentar os ecologistas como prototerroristas, ganhando assim a opinião pública. Tal como Cassandra, condenamos ao descrédito aqueles que nos alertam para o futuro como consequência das nossas ações. 

Dos avós, da solidão e do efémero tornado perene

Leio no Público a notícia de um neto que, procurando a localização exata de casa dos seus avós no goolgle maps, se deparou com uma imagem do seu avô, entretanto falecido. António Gomes, assim se chamava o avô, foi capturado pela câmara dos carros que, rua a rua, vão registando o aspeto das nossas cidades. André Gomes, o neto, partilhando a sua descoberta fala da emoção pela agora imortalizada imagem do seu avô, plantado no portão de casa, vestido de branco, e certamente olhando com curiosidade o carro equipado de câmaras.

Este instante, tão efémero como são todos os instantes capturados em fotografia, tornou-se perene ao chegar a uma plataforma onde tudo fica guardado. Perene, mas nem sempre visível, já que num lembrar da nossa temporalidade – a biológica, mas também a das próprias cidades – estes registos vão sendo atualizados: um prédio substitui-se a outro, uma vida antes fulgurosa dá lugar ao vazio da morte.

A esta partilha responderam muitos outros netos, também eles encontrando os seus avós na mesma plataforma. É emocionante ver todas essas partilhas, num quase diálogo com o passado, com as pessoas e com os lugares.

Uma foto é sempre efémera, mas é também sempre um reflexo de práticas, hábitos, monotonias. Não estranha que tantos avós sejam capturados à porta de casa em fotografias tiradas em momentos aleatórios. Aí, nos seus pátios, nas suas varandas, passam grande parte dos seus dias, vivendo a solidão, esperando que alguém passe.

Também a minha avó está imortalizada no google maps. Sentada exatamente onde eu esperaria que estivesse. Continua viva e saudável, provavelmente sentada naquele mesmo sítio enquanto escrevo estas linhas. A minha avó adora caminhar. Fazia quilómetros e quilómetros todos os dias. Hoje, já não se pode permitir tantos quilómetros, pelo que se senta, vendo os outros passar. Daquela cadeira onde se senta, vê-se a autoestrada. Quando lhe perguntam se gostaria de ter barreiras que limitem a poluição sonora – barreiras essas que existem do lado oposto da autoestrada – responde prontamente que não. É que limitando o ruído limita-se também a vista. E quando as nossas próprias pernas não nos permitem viajar como gostaríamos, sobram os olhos para que viajemos pelos outros.

A ecologia deles e a nossa

Crónica do mês de junho no Gerador

Há uma clivagem cada vez maior entre as ações políticas necessárias para enfrentar as múltiplas crises ecológicas e as ações tomadas (ou, pelo menos, assumidas como necessárias). As recentes votações e declarações relativas à Lei de Restauração da Natureza mostram que a direita e os liberais não estão sequer dispostos a aceitar as medidas mais básicas. E se ainda não podemos falar de negacionismo climático e ecológico, podemos certamente falar de atrasismo. E é por isso que a ecologia, a nossa ecologia, tem de ser progressista e radical.

Falo de tudo isto aqui: